Profissionais da área da Psicologia poderão contar em alguns
anos com uma ferramenta de análise computacional para realizar a triagem de
crianças com transtorno do espectro autista (TEA) com maior precisão.
Um grupo de pesquisadores da University of Minnesota e da
Duke University, nos Estados Unidos, em colaboração com colegas do Instituto de
Computação da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), desenvolveu um
software para análise automatizada de vídeos de testes de triagem de autismo.
Alguns dos resultados das análises dos testes feitas pelo
software foram descritos na edição de junho da revista Autism Research and
Treatment.
"A ideia é que o software possa contribuir para aumentar
a acurácia da triagem de crianças com autismo", disse Thiago Vallin Spina,
estudante de doutorado no Instituto de Computação da Unicamp e um dos autores
do projeto, à Agência FAPESP.
"Nossa meta é ter uma versão do software que possa ser
utilizada em escolas de educação infantil, por exemplo, para realizar a triagem
de crianças com suspeita de autismo com maior precisão e encaminhá-las para a
realização do diagnóstico por especialistas o mais cedo possível", afirmou
Spina, que faz doutorado com Bolsa da FAPESP e orientação do professor Alexandre
Xavier Falcão.
De acordo com Spina, estudos recentes apontam que muitas
crianças com TEA apresentam marcadores comportamentais indicativos de autismo
logo no primeiro ano de vida, tais como a dificuldade de desviar o olhar de um
determinado ponto para rastrear um estímulo visual.
A fim de tentar detectar mais precocemente esses distúrbios
no desenvolvimento infantil - e iniciar uma intervenção clínica intensiva - são
feitos comumente três tipos de testes comportamentais, baseados na Escala de Observação
de Autismo para Lactentes (AOSI, na sigla em inglês), para avaliar a atenção
visual da criança.
No primeiro teste, um brinquedo sonoro é chacoalhado ao lado
esquerdo da criança e, em seguida, outro brinquedo é balançado ao lado direito,
a fim de avaliar o tempo que ela leva para responder ao segundo estímulo por
meio do desvio do olhar.
Já no segundo teste, um brinquedo é movido horizontalmente
próximo ao rosto e no campo de visão da criança, para verificar se há algum
atraso em rastrear o movimento do objeto.
E no terceiro teste, uma bola é rolada em direção à criança
com intuito de verificar se a criança pega a bola e estabelece contato visual e
interação social com o especialista.
O problema é que esses testes ocorrem em tempo real e durante
sua realização o profissional precisa não apenas controlar o estímulo, como
também contar o tempo que a criança leva para reagir, o que torna o diagnóstico
impreciso, segundo Spina. "O tempo de atraso da criança para reagir aos
estímulos considerado nestas medidas de atenção visual é de um a dois
segundos", disse.
"Por isso, o diagnóstico de TEA por meio desses testes
depende em grande parte da experiência e acurácia do especialista em
identificar com precisão o tempo de atraso na resposta da criança ao estímulo",
disse Spina.
Medições automáticas
Para tentar aumentar a precisão dos resultados, os
pesquisadores desenvolveram algoritmos (sequências de comandos) de
processamento de imagens e de visão computacional, que fazem medições
automáticas da atenção visual de crianças durante os testes comportamentais de
triagem de TEA a partir da gravação de vídeos das sessões de avaliação.
Para isso, utilizaram gravações de vídeos de testes
comportamentais durante sessões de avaliação de TEA realizados por Amy Esler,
professora de Pediatria na University of Minnesota, com um grupo de 12
crianças, com idade entre 5 e 18 meses, indicadas para realização dos testes.
As gravações foram feitas durante o estágio de pesquisa de Spina na
universidade norte-americana, no grupo do professor Guillermo Sapiro.
"Colocamos duas câmeras convencionais de alta resolução
na sala onde foram realizadas as sessões de avaliação, sendo uma posicionada no
centro da mesa da professora Esler e com foco direcionado para a lateral das
crianças, e outra em um canto da sala, para obter uma visão geral do
comportamento das crianças durante as sessões", contou Spina.
O software foi capaz de rastrear a direção do rosto das
crianças participantes dos testes comportamentais de atenção visual. Para fazer
isso, o sistema computacional identificou, inicialmente, a direção dos olhos e
do nariz das crianças no primeiro quadro (frame) do vídeo dos testes em relação
ao objeto apresentado a elas.
Por meio de algoritmos de visão computacional, o software
avaliou se a direção dos olhos e do nariz das crianças se repetia ou mudava nos
quadros seguintes do vídeo.
Dessa forma, conseguiu estabelecer vetores de movimento dos
olhos e do nariz da criança de um quadro para outro e, por meio de medidas
geométricas, estimar em que direção ela estava olhando durante os testes em
relação aos objetos - se em direção a eles ou não.
"Como sabia em que direção a criança estava olhando no
primeiro quadro do vídeo e qual a posição do objeto, o software foi capaz de
rastrear os movimentos dos olhos da criança e indicar se apresentavam ou não um
correlação com a direção do brinquedo", explicou Spina.
Os resultados das análises dos vídeos feitas pelo software
foram comparados com a avaliação clínica feita por Esler com base na observação
em tempo real dos testes e nos próprios vídeos - sem terem passado pelas
análises do software - e com as de dois estudantes de graduação em Psicologia e
uma psicóloga não especializada em autismo.
A comparação mostrou que o programa foi capaz de detectar
sinais comportamentais indicativos de autismo tão bem quanto a especialista e
melhor do que a psicóloga e os estudantes de Psicologia.
"O programa permite registrar os tempos de reação da
criança a um estímulo visual com até décimos de segundo, uma vez que cada segundo
de um vídeo tem 30 quadros", explicou Spina.
Possíveis contribuições
O software representa uma primeira etapa de um projeto de
longo prazo, desenvolvido por um grupo multidisciplinar de pesquisadores das
áreas de Psicologia, visão computacional e aprendizado de máquina, que visa
desenvolver ferramentas de baixo custo, automáticas e de análise quantitativa
de dados, que podem ser úteis para identificar crianças com TEA mais
precocemente.
Apesar de os sintomas do autismo surgirem muitas vezes cedo e
o distúrbio comportamental poder ser diagnosticado nos primeiros anos de vida,
a idade média de diagnóstico de TEA em países como os Estados Unidos é próxima
aos 5 anos, apontam os autores do artigo.
"O software poderá contribuir para os profissionais da
área de Psicologia e pesquisadores em TEA na identificação de marcadores de
risco de autismo por meio de análises de grandes quantidades de vídeos do
comportamento natural da criança em casa ou na escola ou das próprias sessões
de avaliação clínica", disse Spina.
"Além disso, abre portas para a melhoria dos protocolos
de avaliação em curso e para descoberta de novas características de
comportamento de crianças com TEA, aumentando a granularidade das análises e
fornecendo dados em uma escala mais fina", avaliou.
Em sua pesquisa de doutorado, Spina utiliza algoritmos para
analisar a partir de vídeos um comportamento motor de posicionamento e
movimento de braços identificado como um possível novo sinal característico de
autismo.
Denominada assimetria dos braços, o comportamento foi
identificado durante estudos realizados nos últimos anos com crianças com
autismo com entre 18 meses e 24 meses de idade.
Os autores do estudo identificaram que, diferentemente do
andar de crianças sem autismo - cujos braços tendem a ficar ao lado do corpo,
em uma posição simétrica e com movimento de balanço - as crianças com autismo
apresentam uma posicionamento assimétrico dos braços, com um estendido e outro
flexionado na horizontal e para frente.
"Desenvolvemos um software para medir esse comportamento
motor específico. A ideia é expandir sua aplicação para medir outros movimentos
que também são bastante característicos de crianças com TEA, como o balanço do
tronco para frente e para trás", contou Spina.
Já o grupo de pesquisadores da Duke University desenvolve um
aplicativo para tablet que pretende substituir a forma como os testes
de atenção visual são feitos hoje. O objetivo é imitar os mesmos tipos de
interações que os testes com brinquedos e bolas medem, mas sem a necessidade de
utilizar os objetos.
"Eles estão discutindo quais tipos de comportamentos
indicativos de autismo poderiam ser identificados por esse aplicativo para
tablet", contou Spina, que não participa diretamente do projeto.
"Pretendemos dar continuidade à cooperação com o Sapiro na Duke University
em projeto conjunto após o fim do meu doutorado."
O artigo Computer vision tools for low-cost and
noninvasive measurement of autism-related behaviors in infants (doi:
10.1155/2014/935686), de Spina e outros, pode ser lido na revista Autism
Research and Treatment em www.hindawi.com/journals/aurt/2014/935686.
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